Imagine um país de polícia sem armas; casas sem grades; estradas sem buracos; polítca sem corrupção; chefe de Estado sem motorista; documentos sem carimbo; aluguéis sem avalistas; menos de dez vezes entre o maior e o menor salário; estradas municipais rurais asfaltadas; nenhum papelzinho no chão, apenas por educação; uma das melhores educações escolares do mundo e tudo isso construído dos anos 1830 para cá, quando se iniciou sua colonização européia.
Agora imagine isso tudo num cenário cheio de cores, sem poluição, de pastagens verdes, montanhas lindas com neve no topo todo o ano, rios límpidos, ausência de cobras, mosquitos, mosca do berne ou dos chifres, carrapato, ou mesmo abigeato. Essa é a Nova Zelândia! Pouco menor que o Rio Grande do Sul, com apenas 4,5 milhões de habitantes, mas que exporta 1/3 de todos os lácteos exportados no mundo, sem subsídios e deixando qualidade de vida aos produtores e em toda a cadeia.
Abaixo um resumo dos principais acontecimentos, dos primórdios à atualidade, que moldaram o leite no país (seleção de pontos pelo autor) e, na sequência, uma seleção de fatores que caracterizam seu perfil exportador-competitivo, com alguns comentários.
Figura 1. Cena colonial dos primórdios do leite nos anos 1830 na Nova Zelândia.
Figura 2. Capa de uma revista de 1972 sobre salas de ordenha na NZ. Em toda a edição aparecem carrocéis já com vários anos de uso. No Brasil, estão sendo recém introduzidos (Imagem: W. Beskow).
Dois tipos de produtores
A grande maioria dos produtores (~95%) produz leite sazonalmente (seasonal dairy), cujo leite é exportado. Os demais, produzem como no Brasil, com vacas em lactação todo o ano, para consumo doméstico do país (town milk dairy). Por que sazonal? Aqui está o grande segredo da Nova Zelândia que a faz competitiva e distinta do mundo todo: o ajuste da curva de oferta anual de forragem (taxa de crescimento da pastagem) com a curva de demanda alimentar do rebanho (Figura 3). Tenta-se ajustar o pico da oferta (primavera) com o pico da demanda do rebanho. Sincronizando-se naturalmente as parições, consegue-se isso. O rebanho é inseminado em novembro/dezembro (10-12 semanas), pari em agosto/setembro e é secado em abril, quando começa o frio e a faltar pasto.
Figura 3. Rebanho em pico de lactação em outubro na Nova Zelândia.
Os produtores sazonais recebem por kg de gordura+proteína bruta (GPB), que na NZ se convencionou chamar de "milksolids" (junto), abreviado em inglês como MS (não aconselho seu uso em português por confundir-se com kg de matéria seca). Uma vaca média deles tem 8,4% de GPB (a brasileira cerca de 6,6%). Portanto, o produto da vaca deles, o sistema de produção e de pagamento são diferentes dos nossos. São fruto de uma nação que precisa exportar 95% do que produz e com lucro, ano após ano, sem ajuda de governo, com mão-de-obra cara e escassa, sem produzir soja alguma, nem milho grão.
O sistema de parceria 50:50
Para vender leite em uma cooperativa como a Fonterra, é necessário comprar as cotas-partes de sócio na quantidade de uma para cada kg pretendido a venda no ano. Um produtor médio tem cerca de 390 vacas, produzindo cerca de 130.233 kg por ano de GPB a NZ$4,52/cota e R$1,70/NZ$, temos que um produtor típico tem R$1.000.715,00 em cotas (note: 1 produtor = 1 voto, por princípio do cooperativismo). Com toda essa necessidade de capital, como começar? E cadê dinheiro para terra, vacas instalações etc.?
A solução que há décadas foi criada por eles é a parceria pecuária chamada de "50:50 sharemilking". Neste o produtor se aposentando, dono de terras e cotas, junta-se a um casal jovem, com vontade de crescer que só necessita dar um jeito de comprar as vacas e saber trabalhar. O proprietário entra com terra, instalações, manutenções e cotas. O parceiro com vacas e todo o serviço, com prioridade de compra da terra e das cotas.
Uma precificação da frente para trás
No Brasil insiste-se em achar que países que são fortes no leite têm subsídios, facilidades de seus governos e medidas desleais de concorrência. A NZ não tem nada disso desde 1984. O preço do leite é dado totalmente pelo sucesso e preço das vendas no mercado internacional. A cooperativa faz previsões, fecha contratos futuros, estima preços de fechamento para junho de cada ano e paga os produtores com base na forma de adiantamentos a serem acertados no final da safra (que é também final do ano fiscal nacional). O preço final é o faturamento, menos os custos totais da Fonterra, menos o capital a ser reinvestido, aprovado em assembléia. As sobras são divididas anualmente, adicionadas ao preço por kg de GPB no pagamento final.
Por que lá isso funciona? Primeiro, o produtor tem, de fato, participação no negócio (em capital e, consequentemente, presença física ativa). Ele é dono e dirige o negócio, que por sua vez é transparente, cheio de informações e prestação de contas. Você colocaria R$1 milhão num negócio e daria as costas ou sairia a falar mal sem contribuir? Não.
Segundo, o produtor se sente ele mesmo exportador. Ele conhece e acompanha o mercado internacional e sabe quando vai perder ou ganhar mais pelos preços e volume que sua empresa está conseguindo colocar no mercado. É simples! Aqui temos o oposto. O produtor não tem esse canal, as cotas são simbólicas, o preço é complexo (às vezes totalmente disconexo do retorno ao sócio e dono do negócio), temos uma história de tabelamento até 1990, protecionismo vigente e várias outras distorções. Tudo isso num ambiente que acha que luta pelo setor, mas que na verdade pereniza nossas ineficiências.
Visivelmente, eles têm um sistema mais simples do que temos aqui e, portanto, mais fácil de administrar. No entanto, eles o desenharam assim. Ninguém deu nada pronto para a Nova Zelândia. O setor lácteo é tão importante para essa nação, apesar de grande produtora de muitas outras coisas (carne, lã, frutas temperadas, vinhos, cereais, tursimo, serviços, tecnologia agrícola, etc.) que responde por perigosos 25% do PNB (produto nacional bruto).
Um paraíso
Sem dúvida um lugar lindo, agradável, onde tudo parece funcionar e fluir. É claro que, como todo o lugar, também enfrentam grandes desafios: secas, frio (neve no sul), terremotos, distância dos mercados consumidores, concorrência mundial, subsídios dos concorrentes, barreiras comerciais, alto custo da mão-de-obra e da terra etc.
No entanto, a atitude do neozelandês é de estudo dos problemas e oportunidades, buscando superação e vitória pela via mais curta, mais simples, barata e rápida. Valorizam qualidade de vida e família e isso é reflexo de seus valores, sua cultura e educação. Ter vivido lá quase sete anos foi um privilégio, mas como eles mesmo hoje percebem, o futuro e as grandes oportunidades estão aqui.
Sobre o autor: Wagner Beskow viveu quase 7 anos na Nova Zelândia durante seu mestrado e doutorado em Manejo de Sistemas Pastoris na Massey University, Palmerston North. É hoje sócio-diretor da Transpondo Pesquisa, Treinamento e Consultoria Agropecuária Ltda. Mais infomações em: www.transpondo.com.br
Agora imagine isso tudo num cenário cheio de cores, sem poluição, de pastagens verdes, montanhas lindas com neve no topo todo o ano, rios límpidos, ausência de cobras, mosquitos, mosca do berne ou dos chifres, carrapato, ou mesmo abigeato. Essa é a Nova Zelândia! Pouco menor que o Rio Grande do Sul, com apenas 4,5 milhões de habitantes, mas que exporta 1/3 de todos os lácteos exportados no mundo, sem subsídios e deixando qualidade de vida aos produtores e em toda a cadeia.
Abaixo um resumo dos principais acontecimentos, dos primórdios à atualidade, que moldaram o leite no país (seleção de pontos pelo autor) e, na sequência, uma seleção de fatores que caracterizam seu perfil exportador-competitivo, com alguns comentários.
Figura 1. Cena colonial dos primórdios do leite nos anos 1830 na Nova Zelândia.
Figura 2. Capa de uma revista de 1972 sobre salas de ordenha na NZ. Em toda a edição aparecem carrocéis já com vários anos de uso. No Brasil, estão sendo recém introduzidos (Imagem: W. Beskow).
Dois tipos de produtores
A grande maioria dos produtores (~95%) produz leite sazonalmente (seasonal dairy), cujo leite é exportado. Os demais, produzem como no Brasil, com vacas em lactação todo o ano, para consumo doméstico do país (town milk dairy). Por que sazonal? Aqui está o grande segredo da Nova Zelândia que a faz competitiva e distinta do mundo todo: o ajuste da curva de oferta anual de forragem (taxa de crescimento da pastagem) com a curva de demanda alimentar do rebanho (Figura 3). Tenta-se ajustar o pico da oferta (primavera) com o pico da demanda do rebanho. Sincronizando-se naturalmente as parições, consegue-se isso. O rebanho é inseminado em novembro/dezembro (10-12 semanas), pari em agosto/setembro e é secado em abril, quando começa o frio e a faltar pasto.
Figura 3. Rebanho em pico de lactação em outubro na Nova Zelândia.
Os produtores sazonais recebem por kg de gordura+proteína bruta (GPB), que na NZ se convencionou chamar de "milksolids" (junto), abreviado em inglês como MS (não aconselho seu uso em português por confundir-se com kg de matéria seca). Uma vaca média deles tem 8,4% de GPB (a brasileira cerca de 6,6%). Portanto, o produto da vaca deles, o sistema de produção e de pagamento são diferentes dos nossos. São fruto de uma nação que precisa exportar 95% do que produz e com lucro, ano após ano, sem ajuda de governo, com mão-de-obra cara e escassa, sem produzir soja alguma, nem milho grão.
O sistema de parceria 50:50
Para vender leite em uma cooperativa como a Fonterra, é necessário comprar as cotas-partes de sócio na quantidade de uma para cada kg pretendido a venda no ano. Um produtor médio tem cerca de 390 vacas, produzindo cerca de 130.233 kg por ano de GPB a NZ$4,52/cota e R$1,70/NZ$, temos que um produtor típico tem R$1.000.715,00 em cotas (note: 1 produtor = 1 voto, por princípio do cooperativismo). Com toda essa necessidade de capital, como começar? E cadê dinheiro para terra, vacas instalações etc.?
A solução que há décadas foi criada por eles é a parceria pecuária chamada de "50:50 sharemilking". Neste o produtor se aposentando, dono de terras e cotas, junta-se a um casal jovem, com vontade de crescer que só necessita dar um jeito de comprar as vacas e saber trabalhar. O proprietário entra com terra, instalações, manutenções e cotas. O parceiro com vacas e todo o serviço, com prioridade de compra da terra e das cotas.
Uma precificação da frente para trás
No Brasil insiste-se em achar que países que são fortes no leite têm subsídios, facilidades de seus governos e medidas desleais de concorrência. A NZ não tem nada disso desde 1984. O preço do leite é dado totalmente pelo sucesso e preço das vendas no mercado internacional. A cooperativa faz previsões, fecha contratos futuros, estima preços de fechamento para junho de cada ano e paga os produtores com base na forma de adiantamentos a serem acertados no final da safra (que é também final do ano fiscal nacional). O preço final é o faturamento, menos os custos totais da Fonterra, menos o capital a ser reinvestido, aprovado em assembléia. As sobras são divididas anualmente, adicionadas ao preço por kg de GPB no pagamento final.
Por que lá isso funciona? Primeiro, o produtor tem, de fato, participação no negócio (em capital e, consequentemente, presença física ativa). Ele é dono e dirige o negócio, que por sua vez é transparente, cheio de informações e prestação de contas. Você colocaria R$1 milhão num negócio e daria as costas ou sairia a falar mal sem contribuir? Não.
Segundo, o produtor se sente ele mesmo exportador. Ele conhece e acompanha o mercado internacional e sabe quando vai perder ou ganhar mais pelos preços e volume que sua empresa está conseguindo colocar no mercado. É simples! Aqui temos o oposto. O produtor não tem esse canal, as cotas são simbólicas, o preço é complexo (às vezes totalmente disconexo do retorno ao sócio e dono do negócio), temos uma história de tabelamento até 1990, protecionismo vigente e várias outras distorções. Tudo isso num ambiente que acha que luta pelo setor, mas que na verdade pereniza nossas ineficiências.
Visivelmente, eles têm um sistema mais simples do que temos aqui e, portanto, mais fácil de administrar. No entanto, eles o desenharam assim. Ninguém deu nada pronto para a Nova Zelândia. O setor lácteo é tão importante para essa nação, apesar de grande produtora de muitas outras coisas (carne, lã, frutas temperadas, vinhos, cereais, tursimo, serviços, tecnologia agrícola, etc.) que responde por perigosos 25% do PNB (produto nacional bruto).
Um paraíso
Sem dúvida um lugar lindo, agradável, onde tudo parece funcionar e fluir. É claro que, como todo o lugar, também enfrentam grandes desafios: secas, frio (neve no sul), terremotos, distância dos mercados consumidores, concorrência mundial, subsídios dos concorrentes, barreiras comerciais, alto custo da mão-de-obra e da terra etc.
No entanto, a atitude do neozelandês é de estudo dos problemas e oportunidades, buscando superação e vitória pela via mais curta, mais simples, barata e rápida. Valorizam qualidade de vida e família e isso é reflexo de seus valores, sua cultura e educação. Ter vivido lá quase sete anos foi um privilégio, mas como eles mesmo hoje percebem, o futuro e as grandes oportunidades estão aqui.
Sobre o autor: Wagner Beskow viveu quase 7 anos na Nova Zelândia durante seu mestrado e doutorado em Manejo de Sistemas Pastoris na Massey University, Palmerston North. É hoje sócio-diretor da Transpondo Pesquisa, Treinamento e Consultoria Agropecuária Ltda. Mais infomações em: www.transpondo.com.br